SÍNTESE DA BIODIVERSIDADE EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
1. A BIODIVERSIDADE E O BIOMA MATA ATLÂNTICA
O termo biodiversidade refere-se à diversidade biológica responsável pela variedade de formas de vida em todos os níveis, desde micro-organismos até flora e fauna silvestres, além da espécie humana. Contudo, essa variedade de seres vivos não deve ser visualizada individualmente, e sim em seu conjunto estrutural e funcional, na visão ecológica do sistema natural, ou seja, no conceito de ecossistema. Nesse sentido, a biodiversidade não compõe apenas a diversidade genética das espécies vivas, ou unidades evolutivas básicas, mas é também o componente de suporte à continuidade da vida na Terra (Joly et al., 2011). Ou seja, a heterogeneidade do ambiente possibilita a diversidade, e, ao mesmo tempo, é considerada função de si mesma (Bensusan, 2006). A evolução dos neotrópicos (região biogeográfica da América do Sul, Central e Sul da América do Norte) foi singular devido ao completo isolamento pós-soerguimento dos Andes, desde o Cretáceo até o final do Terciário, que gerou a mega diversidade de espécies encontradas aqui atualmente (Antonelli, 2010; Joly et al., 2011). Em contraste, as diferentes formas de uso da terra exercem implicações relevantes na fragmentação de habitats, levando algumas populações a sofrerem um grau de ameaça de extinção. Várias fontes científicas são categóricas em afirmar que estamos vivendo a sexta extinção em massa, provocada pelos seres humanos. O cenário original do continente sul-americano foi completamente modificado com a chegada do homem que praticava caça de algumas espécies até a sua extinção, provocando alterações, em pequena escala, de regiões costeiras e fluviais, e ocupando florestas para implantação de diferentes sistemas de cultivo. A chegada dos europeus instituiu uma fratura temporal, devido ao incremento exponencial de alterações antropomórficas da biosfera e da atmosfera (Joly et al., 2011; Franco et al., 2012). No âmbito dos neotrópicos, a formação da Mata Atlântica merece destaque. Segundo a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Mata Atlântica é o “conjunto de vida (vegetal e animal) definido pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, resultando em uma diversidade biológica própria”. O bioma abrange cerca de 15% do território nacional, estando presente em 17 estados brasileiros (SOS Mata Atlântica, 2019), dentre eles o Estado do Espírito Santo, que tem a totalidade do seu território continental inserido neste bioma. A Mata Atlântica está entre as áreas prioritárias para conservação da biodiversidade e entre as 25 áreas prioritárias de conservação no mundo, devido ao alto nível de diversidade de espécies, endemismo e sua vulnerabilidade às ameaças contínuas, sendo, portanto, considerada um hotspot da biodiversidade. As formações florestais de ocorrência natural no bioma (Floresta Ombrófila Densa, Floresta Ombrófila Mista, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Estacional Decidual e Floresta Ombrófila Aberta) acompanham as características climáticas, de solo e de relevo, sendo influenciadas pela distância do oceano, altitude e regime de distribuição de chuvas (Mendes et al., 2014). O bioma apresenta um elevado número de alterações fisiográficas naturais (e.g. instabilidades geológicas e variações no nível do mar), que no decorrer do tempo foi responsável pelo isolamento e união de diversos ambientes aquáticos. Tais variações ambientais resultaram em diversos eventos biológicos e evolutivos que, por sua vez, deram origem à alta biodiversidade (MMA, 2020). Por exemplo, Mais de 20 mil espécies de plantas vivem neste bioma e cerca de 8 mil são endêmicas (Myers et al., 2000). Essa excepcional diversidade biológica auxilia na proteção de importantes mananciais, garantindo água para o consumo humano, agrícola e industrial, contribuindo, ainda, com o controle da erosão, regulação climática, polinização da agricultura, dentre outros serviços ecossistêmicos. Apesar de todos os serviços fornecidos pela Mata Atlântica, o processo de uso e ocupação humana fez com que a vegetação natural mais bem preservada se resumisse a apenas 13,1% (SOS Mata Atlântica & INPE, 2019). A Mata Atlântica sofreu o mais intenso processo de devastação florestal do país (Dean, 1996) e, em função do alto grau de destruição e consequente fragmentação, é considerada um dos biomas mais ameaçados do mundo (Myers et al., 2000). É relevante destacar o fato de que 31,6% de todas as espécies de plantas, animais e fungos nativos da Mata Atlântica sofrem algum grau de ameaça de extinção (MMA, 2020). No âmbito da fauna, são 518 espécies de anfíbios, sendo que 37 estão ameaçadas de extinção (Toledo & Batista, 2012), 268 espécies de répteis, destas, 39 encontram-se ameaçadas (Costa et al., 2014), 850 espécies de aves, 270 de mamíferos e 350 espécies de peixes (MMA, 2020). Este cenário de devastação, ao longo do contínuo na Mata Atlântica brasileira, ocorreu em todos os estados e, no Espírito Santo, não foi diferente. Originalmente, os 46.095 km2 de área do estado eram cobertos pelo bioma Mata Atlântica, banhados por 16 bacias hidrográficas, todas vertendo para o mar (Paiva, 2004) e totalmente inseridos na Ecorregião Aquática da Mata Atlântica Nordeste (Abell et al., 2008). Contudo, atualmente esse cenário está reduzido a apenas 10,9% de vegetação nativa remanescente bem preservada, localizada, principalmente, na região central do estado (SOS Mata Atlântica & INPE, 2019). O resultado é uma paisagem com fragmentos florestais de diferentes tamanhos, muitos deles isolados e com tamanho reduzido para a manutenção de populações de espécies em longo prazo Apesar dos impactos antrópicos, a Mata Atlântica no estado do Espírito Santo detém expressivo grau de biodiversidade (Dutra et al. 2015), devido à sua heterogeneidade de habitat, com grande variação de altitude e uma grande diversidade de espécies vegetais. Seu território está localizado no encontro das duas principais feições de Mata Atlântica do país, a Mata Atlântica de encosta e a Mata Atlântica de baixada, sobre os Tabuleiros Costeiros. Em seu domínio, são reconhe- cidas sete formações distintas, segundo o mapeamento realizado em 2017, pelo IBGE: Formação Pioneira, Campinarana, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Ombrófila Densa, Contato Floresta Ombrófila/ Formação Pioneira, Contato Floresta Ombrófila/Floresta Estacional e Campo de Altitude. Essa heterogeneidade de ambientes, sem dúvida, fornece recursos para uma rica biodiversidade, representada por muitas espécies ameaçadas e singulares. Para proteger essas espécies e seus habitats, a rede de Unidades de Conservação tem sido uma das principais estratégias de conservação in situ. No entanto, essas áreas ainda enfrentam muitas ameaças, tais como caça, atropelamentos, incêndios, presença de espécies exóticas, disseminação de doenças, extrativismo vegetal, pondo em risco a riqueza biológica remanescentes.
2. ESTRATÉGIAS DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE
s esforços para a conservação da biodiversidade no Brasil tiveram um impulso a partir de 1992, após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, quando foi criada a Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB. Dois anos depois, em 1994, foi criado o Programa Nacional da Diversidade Biológica – PRONABIO, para implementação das diretrizes orientadas pela CDB, e já na primeira década do novo milênio (2003) a Comissão Nacional da Biodiversidade – CONABIO, realizou algumas mudanças no PRONABIO. A CDB é, portanto, um dos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, e sua finalidade é justamente a conservação e a utilização sustentável da biodiversidade, bem como a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes de sua utilização e dos conhecimentos tradicionais associados. Por sua vez, a Conferência das Partes (COP) é uma instância de governança que fiscaliza a implementação dos compromissos estabelecidos e é mantida pela CDB, sendo renovada em reuniões periódicas. Entre os compromissos firmados para a segunda década do século XXI está o Plano Estratégico 2011-2020 que estabelece 20 metas globais para a biodiversidade, conhecidas como Metas de Aichi, estabelecidas na COP-10, em 2010, Nagoia, Japão. Desta forma, em 2011, o Brasil iniciou o processo de internalização das Metas de Aichi e definição das Metas Nacionais de Biodiversidade para 2020, com destaque dos Diálogos sobre a Biodiversidade, a elaboração dos Subsídios Multissetoriais para o Plano de Ação Governamental para a Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade e a criação do Painel Brasileiro de Biodiversidade – PainelBio. Uma etapa importante na estratégia de conservação no Brasil foi a criação, pelo Ministério do Meio Ambiente, em agosto de 2016, O 2. ESTRATÉGIAS DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE
da ferramenta de gestão integrada denominada “Estratégia e Plano de Ações Nacionais Para a Biodiversidade” (EPANB), que integra todas as iniciativas com esse propósito. Dentre os esforços mais importantes em prol da conservação da biodiversidade e garantia da promoção dos serviços ecossistêmicos, estão algumas ações estratégicas, como a criação e consolidação de áreas protegidas, o monitoramento de habitats e espécies, e o combate à supressão ilegal da vegetação nativa (MMA, 2017). No Estado do Espírito Santo podem-se destacar algumas iniciativas importantes que contribuem com a conservação da biodiversidade. O Projeto Corredores Ecológicos, por exemplo, foi uma iniciativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA), executado em parceria com o Governo do Espírito Santo, com o objetivo de garantir a conservação da biodiversidade por meio da proteção de fragmentos florestais e da promoção da conexão entre eles, estimulando a criação de novas unidades de conservação, especialmente a Reserva Particular do Patrimônio Natural, a recomposição de áreas de preservação permanente e reservas legais. As principais atividades do Projeto se encerraram, mas seus resultados continuam a nortear ações de conservação da biodiversidade no estado. O Programa Reflorestar, lançado em 2011, é uma iniciativa do Governo do Estado do Espírito Santo, e seu principal objetivo é incentivar a conservação e recuperação da cobertura florestal. O programa é direcionado aos proprietários de áreas rurais, que desejam destinar parte de sua propriedade para preservar o meio ambiente. O Programa está focado no pagamento por serviços ambientais (PSA) visando à preservação e plantio de novas áreas com florestas. O Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper) implementa o Projeto Bioma Mata Atlântica, desenvolvendo pesquisas de utilização agrícola de espécies nativas da Mata Atlântica com potencial econômico, como é o caso da aroeira (Schinus terebinthifolius), a juçara (Euterpe edulis) e a sapucaia (Lecythis pisonis), além de realizar ações de difusão e capacitação sobre sistemas
agroflorestais, área de preservação permanente e reserva legal. Um passo importante no preenchimento de lacunas sobre o conhecimento da Mata Atlântica, no Estado do Espírito Santo, foi a definição de áreas e ações prioritárias para a conservação da biodiversidade, conforme estabelece o Decreto Estadual Nº 2530-R/10. A iniciativa, liderada pelo Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica (IPEMA), contou com apoio do Fundo de Parcerias para Ecossistemas Críticos (CEPF) (IPEMA, 2005). O produto principal foi a definição de 28 áreas prioritárias para conservação, que correspondem a cerca de 38% do território estadual, abrandendo fragmentos florestais privados, Unidades de Conservação e áreas que os conectam. O estado do Espírito Santo publicou sua primeira lista de espécies ameaçadas em 2005 (Decreto Nº 1.499-R/2005), resultando em 950 táxons ameaçados de extinção no Espírito Santo. A lista foi elaborada pelo Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica (IPEMA), em parceria com Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA) (Passamani & Mendes, 2007; Simonelli & Fraga, 2007). Após 14 anos, o Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA) em parceria com o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES) realizaram a revisão desta lista, resultando em 1.874 táxons avaliados em alguma categoria de ameaça, com 444 espécies ameaçadas de fauna e 1.430 de flora. A lista é uma importante ferramenta de gestão ambiental, indicando prioridades na preservação da flora e fauna (Fraga et al., 2019). O Programa de Apoio à criação de Unidades de Conservação no estado do Espírito Santo também foi executado pelo Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica (IPEMA) em parceria com o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA). O Programa, que contou com apoio do edital de Projetos Demonstrativos do Ministério do Meio Ambiente (PDA/MMA – Projeto 102 – Mata Atlântica), contribuiu na estruturação de propostas para para a criação de Unidades de Conservação no estado, de forma participativa e integrada aos atores locais. Foram mapeadas 30 áreas prioritárias e potenciais para a criação de Unidades de Conservação, mas, até o momento, a única UC efetivamente criada foi o Monumento Natural Estadual Serra das Torres (IPEMA, 2010; IPEMA, 2011).
3. UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
necessidade de proteção dos ambientes naturais surgiu durante a idade média, no início da crise ambiental decorrente do crescimento populacional e sobreexplotação dos recursos naturais (Thomas, 2010; Hassler, 2005). Registros históricos apontam que a primeira área de proteção surgiu na Polônia no século XIV (Ramade, 1979) e as primeiras leis protecionistas e formação de áreas protegidas surgiram com objetivo de proteção das áreas específicas para a caça, além da reserva dos recursos naturais para uso futuro pelas classes dominantes (Thomas, 2010). No Brasil as primeiras iniciativas para a proteção dos recursos naturais ocorreram no século XVII, durante a ocupação holandesa em Pernambuco, por ordem de Maurício de Nassau, com intuito de proteger florestas do Nordeste visando à reserva de recursos naturais para uso futuro (Hassler, 2005). Posteriormente, em 1876, o engenheiro André Rebouças propôs a criação dos Parques Nacionais da Ilha do Bananal (Tocantins) e das Sete Quedas do rio Paraná (Paraná), que só seriam criados em 1939 (Hassler, 2005; Campos & Costa-Filho, 2006). A criação do Parque Nacional das Sete Quedas do rio Paraná foi motivo de forte campanha de implementação por parte do aviador e inventor Alberto Santos Dumont. Contudo, a primeira UC criada no Brasil foi o Parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro, em 14 de junho de 1937, por decreto do presidente Getúlio Vargas (Campos & Costa-Filho, 2006; ICMBio, 2013a). O uso e atribuições das UCs brasileiras são regidos atualmente pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, e Decretos nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, e nº 5.746, de 05 de abril de 2006), que classifica os objetivos de uso e proteção das UCs em 12 categorias contidas em dois grupos distintos de unidades, sendo um grupo com foco na Proteção Integral e outro no Uso Sustentável dos recursos naturais (MMA, 2011). As UCs ocupam, aproximadamente, 17% do território brasileiro, em diferentes categorias e esferas de gestão, e a conservação dessas paisagens garante não apenas a qualidade da água e a manutenção de modos de vida tradicionais, mas também a proteção de espécies ameaçadas de extinção. Áreas com altíssima riqueza de aves, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes, invertebrados e plantas estão protegidas em doze categorias de Unidades de Conservação federais, estaduais, municipais ou particulares, nos diferentes biomas brasileiros, reduzindo o risco de extinção de muitas delas (WWF, 2014). Foram contabilizadas, no Brasil, 2.376 Unidades de Conservação de administração federal, estadual, municipal ou particular. Destas, 1.364 estão localizadas no bioma Mata Atlântica e representam 9,84% deste bioma (MMA, 2019a). As UCs são áreas criadas com estratégias conservacionistas que possuem grande importância na proteção e manutenção dos ecossistemas naturais. No âmbito do bioma Mata Atlântica, as regiões que concentram as maiores áreas de remanescentes florestais estão associadas às UCs, que representam um patrimônio de valor inestimável e têm função de proteção da sua rica biodiversidade, além de proporcionar meios e incentivos para o desenvolvimento de pesquisas e educação ambiental (Ferreira et al., 2005; Drummond et al., 2006; Lemos de Sá, 1999; Fearnside, 2008). No estado do Espírito Santo são 121 Unidades de Conservação protegendo aproximadamente 10,5% dos remanescentes de Mata Atlântica, sendo 12 federais, 17 estaduais, 38 municipais e 54 particulares (SOS Mata Atlântica & INPE, 2019; MMA, 2019b). Embora existam diversos estudos sobre fauna e flora nas Unidades de Conservação do Espírito Santo, este conhecimento encontra-se disperso na literatura (relatórios, livros, monografias, dissertações, teses e artigos publicados), em planos de manejo e em em coleções biológicas. Esta pulverização de informações torna difícil a sua utilização para o entendimento da biodiversidade no estado e o uso destas informações na tomada de decisões. Assim, torna-se necessário o levantamento e disponibilização destes dados de forma integrada, visando o seu uso no desenvolvimento de políticas públicas e na gestão das UCs e dos recursos naturais do Espírito Santo. Portanto, o objetivo geral deste estudo foi diagnosticar o conhecimento produzido sobre a biodiversidade da Mata Atlântica nas Unidades de Conservação federais e estaduais no Estado do Espírito Santo. Para tanto, foi necessário explorar e reconhecer a literatura científica acerca da biodiversidade nas Unidades de Conservação no Estado do Espírito Santo, identificar e descrever grupos mais amostrados em cada UC. O estudo permite identificar o viés relacionado ao conhecimento da riqueza de espécies de diferentes grupos taxonômicos, analisar a coleta de dados ao longo do tempo, bem como diagnosticar as lacunas de conhecimento observadas para as diferentes UCs.